segunda-feira, 27 de abril de 2009

UM AMOR NUNCA SE ESQUECE

" Joana não esquece aquele fim de semana que passou no Norte do país, em Vila Real, quando tiveram que ir à festa do tio Quim, irmão do pai, que há muitos anos tinha assentado vida para lá do Marão.
Uma viagem de sete horas de comboio até ao Porto e depois outra de carro até Vila Real que demorou quase o dobro do tempo por curvas e contra curvas com algumas paragens para atenuar a má disposição.
Não bastou a difícil viagem; também o aniversário seria ensombrado pela fatalidade que tinha tomado conta da vizinha do tio, a jovem Idália, e que era o motivo de todas as conversas naquela reunião de família. O marido, que cumpria serviço militar no Ultramar deixara de dar notícias. Nesse fim de semana, Idália, uma jovem com apenas vinte e quatro anos, mas já com dois filhos nos braços, Maria Inês com três anos e José António, com apenas dezoito meses, recebia uma carta.
Mas, em vez de o remetente ser do seu querido marido Fernando, era do exército português que lhe escrevia estas palavras:
Mochico
20 de Fevereiro de 1962
Exmª Srª D. Idália Pereira dos Santos
Escreve a V. Exª o comandante da companhia 267 a que pertencia o seu marido que faleceu em combate ao serviço da pátria.
Em nome de todos e de cada um dos elementos da companhia apresento a V.- Exª as mais sinceras condolências e confio no forte moral e compreensão de V. Exª para suportar tão profunda dor. Jamais esqueceremos o nosso companheiro.
Agradeço a V. Exª que por meios oficiais, solicite a trasladação para a Metrópole - pois o corpo está encerrado em urna de chumbo - uma vez que só a família a pode pedir...
Idália não tinha forças para ler mais. Deixou-se cair num pranto desesperado enquanto o pai de Joana lia o resto da carta assinada pelo comandante da companhia. Dentro do envelope uma outra carta do Ministério do Exército onde se definiam as exigências para a trasladação do corpo.
Um telegrama posterior dava conta do montante de toda esta operação: dez mil escudos, uma fortuna que não estava ao alcance daquela família que ainda teria de custear o funeral civil em Portugal.
O marido de Idália ficou sepultado no Moxico, numa urna de chumbo. Idália ficava com dois filhos nos braços, sem trabalho e sem o sustento da casa. O marido, que todos os meses enviava o ordenado para um dia voltar, não regresssou.
Aquela família era só uma entre as muitas centenas de milhar de portugueses que sofreram em silêncio a morte de entes queridos e cujo corpo nunca puderam chorar.
Os custos que o Estado obrigava as famílias a suportarem tinha um claro objectivo: evitar a trasladação dos corpos e a imagem mortífera que era a chegada de urnas com os militares mortos, enviados para uma guerra que ninguém percebia. E além das urnas, a realização de funerais que podeiam revoltar a opinião pública contra o governo totalitário e que fazia da propoganda uma arma política.
Joana tinha apenas doze anos mas nunca mais se esqueceu daquela imagem de Idália, vestida de negro, cara conformada e marcada por noites de lágrimas agarrada à carta e à impossibilidade de fazer o corpo do marido regressar à terra para estar perto dela, no cemitério que ficava ali, a quinhentos metros da pequena habitação onde residia.
Foi talvez, inadvertidamente e sem o conhecimento da vida, que Joana tomou o primeiro contacto com África e com a chamada guerra ultramarina para onde muitos foram e não mais voltaram. (...)"
In: Os Retornados - Um Amor Nunca se Esquece, de Júlio Magalhães

13 Comentários:

Blogger rosa dourada/ondina azul disse...

Assunto comovente que aqui trazes, hoje!

Muito bem contado, tomara que fosse apenas um conto, mas é sim, uma lenda verdadeira.

Corajosa Maria, que trouxeste aqui e agora...


Beijinho,

27 de abril de 2009 às 18:33  
Blogger SILÊNCIO CULPADO disse...

Maria Faia

Quem viveu estes tempos lê com grande intensidade o que aqui está escrito. O meu ex-marido também foi um ex-combatente e eu sei a dor de mais de dois anos em que combateu em Angola.
Vieram marcas que nunca se apagaram pois as recordações de guerra estão sempre presentes.

Só quem passou por isto!...


Abraço

27 de abril de 2009 às 19:14  
Blogger José Lopes disse...

Eu vivi tudo isto e ultrapassei-o, o desmoronar da família, alguma rejeição, o reconstruir de uma vida a bem dos filhos ...
Talvez um dia encontre o distanciamento necessário para abordar este tema.
Cumps

27 de abril de 2009 às 23:46  
Blogger Elvira Carvalho disse...

E aconteceu com tantos...
Venho fazer um pedido de amiga:
Por favor pode deslocar-se ao Sexta? Muito obrigada.
Um abraço amigo

28 de abril de 2009 às 01:13  
Anonymous Anónimo disse...

Baby, estamos a reviver o passado?
Se é só a nostalgia do passado tudo bem
Não te ponhas com ideias.
Bjo daqueles,
Jorge

28 de abril de 2009 às 02:52  
Blogger Mocho Falante disse...

olá Maria.

Vim agradecer o comentário deixado lá no meu poiso e eis que encontro um blog muito interessante. Parabéns.

Vou volta com toda a certeza, aliás vai ficar linkada no meu poiso

Beijocas :-)

28 de abril de 2009 às 09:06  
Blogger gaivota disse...

tantos que foram e não voltaram!
um bom livro, um romance para se ler e tirar alguma opinião do que foi "aquele tempo"
era assim, vizinha...
beijinhos

28 de abril de 2009 às 16:43  
Blogger Mário Margaride disse...

Querida amiga

Sei muito bem do falas. Vivi essa epopeia da guerra colonial. Sei quanto dificil era esse degredo, de estar desterrado por terras do ultramar.
Estive cerca de dois anos em Angola. Entre 1973 e 1975, e foi dificil, a separação dos nossos entes queridos...

Um beijo muito grande

Um excelente semana!

Mário

28 de abril de 2009 às 18:41  
Blogger Bípede Implume disse...

Ainda é um tema que atravessa milhares de famílias. A tenebrosa guerra colonial e suas histórias tão dolorosas como esta.
Felizmente que agora já não existe essa preocupação.
Beijnhos amiga.

29 de abril de 2009 às 00:52  
Blogger C Valente disse...

Passei rapidamente para agradecer e mandar um abraço.
As obras continuam e cada vez o cerco aperta mais, vamos aguentando
Saudações amigas

29 de abril de 2009 às 19:43  
Blogger Ana Tapadas disse...

Este texto traz tanta memória!
Gostei de ler.

29 de abril de 2009 às 22:07  
Blogger Bípede Implume disse...

Querida Maria Faia
Fico muito feliz por gostares das minhas fotografias.
Podes levar à vontade.
E sobre a amizade, que muito prezo, todos nós, de uma maneira ou outra, passámos por situações semelhantes. Só nos resta sermos fiéis ao nosso coração. Ele é que nos leva, não há nada a fazer.
Obrigada pelas tuas palavras.
Beijinhos

29 de abril de 2009 às 22:14  
Blogger *Lisa_B* disse...

Querida amiga,
sei o que isso é pelo regresso do meu tio que foi como policia para lá em tempos de tropa eles eram mito atacados como força de ordem...correram muitos riscos ele chegou traumatizado porque viu os colegas despedaçados ao lado...ele gritava tinha pesadelos na noite q2ue nos atormentavam a todos, passou dias em hospitais e não conseguia esquecer aquilo que la viveu...nem quer ainda que lhe falem hoje na guerra...
Hoje tem uma vida mais calma mas fala pouco.
O que ainda ajudou é que a mulher minha tia teve o 2º filho (entre guerras) logo dia 24 Abril ao som da Grândola Vila Morena...o bebé ajudou-o a apegar-se à vida com força...
Essa história fez-me recorda esta...e quantas mais haverão por aí...alguém lhes deu o devido valor pelo que lá passaram? Nada!

Penso que o facto de tanto ter sofrido por lá o fez chegar-se ainda mais ao amor que sentia pela minha tia e filhos...

Beijinhos e obrigada pelo bocadinho de leitura e de escrita minha.

30 de abril de 2009 às 06:27  

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